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Bebês Reborn: Entre o Conforto Emocional e os Desafios da Contemporaneidade

Por Marajane Loyola

Psicóloga, Terapeuta de Famílias e de Casais e Presidente da ATF MINAS (Gestão 2022/2025)

 

Nos últimos anos, os bebês reborn — bonecas hiper-realistas que imitam recém-nascidos — se tornaram um fenômeno cultural e social, despertando curiosidade, afetos e também polêmicas. Para além do aspecto estético, essa prática envolve dimensões emocionais profundas, que merecem reflexão, especialmente no campo da terapia familiar sistêmica

Quando a fantasia acolhe a dor: o potencial terapêutico

Em diferentes contextos, as pessoas criam formas singulares de expressar afeto, lidar com perdas ou preencher ausências. O contato com objetos que remetem ao cuidado — como bonecas hiper-realistas — pode, em alguns casos, favorecer processos de elaboração emocional, ajudando a organizar sentimentos difíceis e a ressignificar vivências marcantes.

Mais do que simples brinquedos, esses objetos podem se transformar em recursos para expressar necessidades afetivas, acolher memórias e até estabelecer novas formas de vínculo consigo e com os outros. Quando esse movimento acontece de forma consciente e respeitando os limites individuais, pode representar um caminho legítimo para o fortalecimento do bem-estar emocional.

O peso do julgamento social e os estigmas de gênero

Entretanto, é importante refletirmos sobre como a sociedade reage de maneira diferente quando homens e mulheres se dedicam a práticas semelhantes. Homens que colecionam carros, miniaturas, videogames ou peças de action figures, muitas vezes são vistos como entusiastas, aficionados ou até experts em um hobby. A mesma lógica, no entanto, não se aplica quando uma mulher cuida ou coleciona bonecas com zelo e intensidade.

Quando a prática envolve a simulação do cuidado com o bebê reborn — como alimentar, trocar roupas ou criar uma rotina simbólica — o comportamento frequentemente é desqualificado, rotulado como “exagerado”, “infantil” ou até mesmo “patológico”. Esse olhar reforça estereótipos de gênero que associam as expressões afetivas femininas ao excesso ou à fragilidade, enquanto naturaliza as práticas de coleção ou entretenimento quando realizadas por homens.

Do ponto de vista da terapia sistêmica, essa diferença revela o quanto as expectativas sociais moldam não apenas os comportamentos, mas também as interpretações que damos a eles. O que é considerado saudável ou disfuncional, aceitável ou estranho, frequentemente está atravessado por normas culturais e de gênero que precisam ser problematizadas para reflexões mais amplas.

O risco do excesso: quando o símbolo se confunde com a realidade

Por outro lado, a abordagem sistêmica também nos alerta sobre os riscos de quando o uso desse objeto passa a ocupar um espaço disfuncional nas relações. O psiquiatra Daniel Barros, em entrevista recente, destacou que o perigo não está no brincar ou colecionar, mas quando ocorre uma confusão entre fantasia e realidade, levando a comportamentos rígidos e compulsivos.

Para a terapia familiar, esse é um ponto de atenção: quando uma pessoa utiliza o bebê reborn para substituir vínculos reais, evitar o contato com a dor ou impedir novas experiências afetivas, o objeto pode reforçar padrões disfuncionais e dinâmicas de isolamento. 

Redes sociais e a espetacularização do cuidado

O fenômeno ganhou ainda mais visibilidade com a ascensão das redes sociais, onde influenciadores compartilham vídeos de rotinas de cuidado com os reborn: dar mamadeira, trocar fraldas e até simular partos. Esse conteúdo gera reações polarizadas: de um lado, seguidores que se identificam e acolhem a prática; de outro, críticas que apontam um suposto “desvio de normalidade”.

Do ponto de vista sistêmico, essas manifestações expõem como a sociedade contemporânea negocia suas referências de maternidade, cuidado e pertencimento, e como a espetacularização do íntimo se tornou uma marca dos vínculos afetivos mediados pela tecnologia. 

Implicações éticas e legais

A repercussão social do tema chegou ao Congresso Nacional, com projetos de lei que visam regulamentar o uso dos bebês reborn em espaços públicos. Um dos pontos mais controversos é a tentativa de algumas pessoas obterem benefícios destinados a crianças reais, como vagas prioritárias em serviços públicos, ao estarem acompanhadas dessas bonecas.

Esse debate revela o quanto a sociedade está sendo chamada a pensar sobre os limites entre o simbólico e o legal, uma temática que a terapia sistêmica sempre valorizou: como nomeamos, reconhecemos e regulamos os vínculos e os lugares que os objetos — ou sujeitos — ocupam nas redes relacionais.

Reflexões sistêmicas: o que o fenômeno nos ensina?

O fenômeno dos bebês reborn pode ser lido como um espelho das nossas atuais inquietações: o desejo de pertencimento, a necessidade de cuidado e o desafio de lidar com as fragilidades humanas.

Na prática terapêutica, é fundamental não patologizar automaticamente quem se relaciona com esses objetos, mas também não negligenciar sinais de sofrimento psíquico. O olhar sistêmico nos convida a compreender a função que o bebê reborn exerce naquele sistema familiar: está favorecendo a saúde relacional ou reforçando um padrão de isolamento e evitamento?

Como nos lembra a psicanalista Thaís Basile, “o cuidado com a boneca pode ser uma forma de viver, na fantasia, o ideal inatingível de mãe perfeita”. Essa reflexão é especialmente importante para os profissionais que atuam com famílias e casais, pois toca diretamente em questões de identidade parental, expectativas sociais e experiências não resolvidas.

Para refletir:

  • Que função simbólica/metafórica o bebê rebornexerce na vida daquela pessoa?
  • Ele amplia ou restringe possibilidades de relação com outras pessoas?
  • Como a família se posiciona frente a esse vínculo?